Um café. Por
receio, a garota sentou-se atrás, não só da grade, mas da porta de vidro também.
A dificuldade em respirar, o gosto de fel na boca e a série de nuvens cinza que
apagaram o sol, fizeram-na engolir alguns pedaços de tiramissú com uma calda
que lembrava o sangue que sentia nos olhos. A cada parte que descia, não sentia
doçura alguma. Lembrou-se de um livro que lera na época da escola, durante o
antigo maternal, que chamava-se “Eu tropeço e não desisto”. De alguma maneira,
aquela história ficou tatuada em sua memória. Havia lido e relido algumas
vezes. Lembrava-se com clareza da finura do livro, da ilustração da capa – uma
menina de vestido branco e avental preto com uma lata de leite na cabeça e
outra nas mãos em um campo gramado, céu azul e ah! Claro. Ela estava de costas,
como alguém que caminha em direção ao horizonte. Cabelos loiros.
Contava a
história de uma jovem que todo dia, enquanto levava os baldes com leite para
casa, tropeçava em algo que a fazia derramar o líquido no chão e retornar a
casa sem nada. No início, ela chorava e era toda tristeza com a situação. Com o
tempo, aprendeu a contornar os obstáculos, as pedras, e conseguiu, finalmente,
chegar com o leite intacto em casa.
Parecia-lhe
uma história sensacional, capaz de fazer seus pequenos olhos brilharem. Só que
ela cresceu. E com olhos e idade maiores, após várias topadas e tropeçadas,
solta um riso sarcástico ao lembrar de todo esse conto, diante de mais um
tropeção.
Caminhou pelas ruas de paralelepípedo, trôpega. Única. Penetrou no metrô e sentou-se em um bar antes de ir para casa. Bebeu umas quatro doses de cachaça e, antes que pedisse a saideira, sorriu e indagou ao cara loiro de cabelos compridos no balcão: “Tem leite?”. A garota que tudo tinha foi até sua residência (tão bem cuidada por ela própria) soluçando de esquina em esquina. No leito branco, derramou-se e dormiu.
Um comentário:
"A vida é um sopro, a solidão é uma faca de dois gumes, a insanidade é um estalo" irretorquivel
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